Preciso dar um jeito na vida
pensou enquanto barbeava-se
e gotas vermelhas
sujavam o branco da pia caótica
respirou fundo e olhou-se no espelho
vendo um vulto
que parecia
um vampiro anêmico
suspirou e bafejou contra o reflexo
um hálito quente
recheados de porres marcioméricos
anomalias urbanas
os dentes em petição de miséria
a língua cega
a garganta escura
Preciso dar um jeito na vida
Sempre pensava assim pela manhã
preciso despertar meu anjo da guarda
implantar leis
ordens
métodos eficientes
preciso religar o telefone dos compromissos
desligar a tv
procurar john fante entre os escombros da abril
preciso dar uma geral nas coronárias
entupidas de angústia precoce
preciso limpar o ego
Preciso dar um jeito na vida
Pensou enquanto sua vida coagulava-se na pia
enquanto planos transformavam-se em espuma
enquanto o shampoo anticaspa arrancava-lhe idéias soberbas
das poucas que resistiam ao tédio inexorável
um filete de sangue saía do nariz
as narinas, um museu de cocaína e fome
tinham fome de mais, mais, mais
Preciso dar um jeito na vida
E a vida evaporou-se com a água do chuveiro
e a blue blade ávida de pulsos
matou a fome
enquanto seus últimos dez batimentos
ecoavam pelos azulejos antiquados
abraçou-se ao vaso sanitário
e viu Deus
e Deus olhou pra ele
chutou sua bunda magra e disse:
Você precisa dar um jeito na vida.
Márcio Américo
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