De repente eu sonhei que ia ficar tudo bem. Eu ia parar de ligar, de me importar, e a vida ia simplesmente tomar seu rumo natural reservado por um destino perpicaz e irônico. Quem sabe não acontecesse como num daqueles filmes do Woody Allen, nós dois nos encontrando daqui há uns três anos andando na rua. Eu seria um cara desencanado e bacana pra caramba. Talvez eu tivesse arrumado um emprego legal que pagasse uma boa grana pra eu fazer alguma coisa não-estúpida como na maioria dos empregos normais. Eu ainda ia continuar bebendo, mas agora controladamente, e só bebida de qualidade, e meu ar ia ter um lance meio James Dean que ia te deixar muito arrependida por me fazer de palhaço nos dias de hoje. Talvez eu terei perdido uns quilos e comprado todos os discos dos Beatles. Vou te chamar pra vir até em casa, abrir um vinho e colocar o Revolver pra tocar. Mas você não vai sacar o Revolver, porque você nunca sacou nada de Beatles ou de coisa alguma no que se refere à boa música, e aí cê vai pedir pra trocar pra outra coisa e vai meter alguma coisa besta tipo música eletrônica ou qualquer outra bobagem que você curta. Mas vai estar tudo bem pra mim. Vou encher tua taça e matar a garrafa de vinho no gargalo, mantendo meu espírito juventude transviada à toda, sem perder o charme de nenhuma forma. Vou deixar tua música tocar por algum tempo, só pra te agradar, vou te servir um macarrão ao molho branco que eu terei preparado, e colocar um Frank Sinatra pra tocar. Nós vamos comer e aí eu vou tomar umas duas doses de uísque e te falar sobre as coisas extremamente importantes que eu vou estar fazendo. Vou te contar que publiquei um livro, viajei pro Machu Pichu, visitei uns amigos malucos em Paris e ando com uma série de ocupações interessantes. Você vai abrir a boca e dizer vários "oh's" e "ah's" e "mas que bom, sempre torci por você" e eu vou perguntar o que você vai ter feito, e meio retesada e confusa você vai dizer que muito provavelmente arrumou algum outro emprego babaca, dormiu com uma série de caras babacas e outras coisas desse tipo. Eu vou fingir interesse e dizer que aquilo parece interessante. Você vai se entregar, e vai sair tudo conforme o planejado. A gente vai dormir junto, e eu vou te dizer coisas bestas e apaixonadas pra você achar que eu ainda sou aquele muleque fodido de vinte anos que não acreditava muito na vida e que se arrastava aos teus pés por um tanto de carinho. E você vai pensar que tá tudo bem, porque agora olha só, ele é um homem, ele tem um carro e uma casa, cozinha macarrão, toma vinho, tem emprego, viajou e fez coisas importantes. Agora sim eu posso ficar com ele, ah sim, eu posso, sem dúvidas, agora ele é um cara importante. E na manhã seguinte eu vou levantar antes de você, vou juntar minhas coisas e vou me mandar, e eu acho que provavelmente depois disso a gente nunca mais vai se ver, mas você nunca vai saber que o vinho era roubado da coleção do meu pai, o macarrão eu tinha comprado no restaurante da esquina, o carro e a casa eram emprestados de um amigo, eu não tinha emprego porra nenhuma, continuava bebendo pra danar, estava desempregado e nos últimos dois anos minha única viagem tinha sido pra um camping numa cidade de praia em que choveu a semana inteira e tudo o que a gente fez foi beber uísque barato e jogar baralho. E vitorioso, vou sair com meu ar de James Dean glamouroso e rebelde enquanto você sente pela primeira vez o gosto da rejeição que eu já cansei de experimentar nessa vida de cão. E então você vai entender que eu terei mudado, que agora eu era bom demais pra você, que você não tinha nem uma chance perto das garotas sofisticadas, cultas e corpulentas com quem eu saía. E não muito longe dali, eu vou estar enchendo a cara num boteco escuro, ouvindo um blues no meu mp3 e pensando que no fundo mesmo, eu só queria que você gostasse de quem eu era há três anos atrás, de quem eu sou hoje.
Caroline says that i'm just a toy
she wants a man, not just a boy
Oh, Caroline says, oh, Caroline says
Lou Reed
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