sexta-feira, junho 17, 2016

Antiquário Lorena

Batia os pés na rua com pressa. Um depois do outro, um depois do outro, num movimento contínuo e consistente de quem queria muito chegar a algum lugar. Ele queria muito chegar a algum lugar, só não tinha ideia de onde. Cruzou a esquina, checou o sinal com o canto do olho e apertou o passo pra atravessar a rua enquanto o verde reluzia e dois carros meio distantes se aproximavam. Pisou na calçada oposta e continuou subindo a rua íngreme, virando de novo na esquina seguinte. Parou em frente a uma porta e entrou. Lugarzinho escuro, entulhado, aparentemente sem ninguém por perto. Logo em cima um letreiro minúsculo e apagado pelo tempo anunciava: “ANTIQUÁRIO LORENA”.

Entrou devagar e foi se esgueirando por candelabros e móveis. Parou na seção de cristais, com belas figuras esculpidas no delicado vidro. Virou-se à esquerda e deu de cara com a estante de livros, empoeirados, velhos e sujos; uns poucos rasgados. Correu os olhos de cima a baixo. Agachou-se e olhou da primeira à última prateleira. Tomou dois exemplares. Procurou por alguém. Uma senhora se aproximou. Muito velha, usando um xale turquesa, cara de cansada. Lembrou-se da senhora de Dostoiévski, a vítima de Raskólnikov. Se imaginou como Raskólnikov. Se imaginou na antiga São Petersburgo. Se imaginou sendo um criminoso. Se imaginou tendo crises de consciência. Se imaginou trabalhando forçadamente na Sibéria, refletindo sobre seus atos.

Percebeu então que não era Raskólnikov. Que não cometera um crime. Que não estava em São Petersburgo. Mas percebeu ter crises de consciência. Percebeu que trabalhava forçadamente não na Sibéria, mas no Brasil. Trabalhava não para pagar um crime, mas para cumprir uma pena – a pena que todos pagam por aqui, a pena de pagar o aluguel, o vestuário e o prato de comida. A pena de existir no mundo especulativo e financeiro. A pena que obrigava aquela senhorinha de xale turquesa a abrir seu velho antiquário todos os dias.

Dissipou os pensamentos deprimentes da cabeça com um chacoalhão. A senhora o encarava sorridente. Não era como a velha de Raskólnikov, era sim amável e gentil. Daquele tipo cuja figura causa simpatia quase que imediata. “São trinta reais, meu bem”, pronunciou daquele jeito amável que só os mais velhos e oriundos de um período onde a educação era artigo de suma importância sabem pronunciar. Agradeceu sem jeito, percebendo que seus devaneios diurnos o haviam feito parecer certa forma de lunático para a simpática senhora. Sacou a carteira, tirou as notas e as entregou. Recebeu os livros numa sacola e voltou pra rua.

Bateu os pés na rua com pressa. Um depois do outro. Cruzou uma, duas esquinas. Andou outra rua íngreme. Quase foi atropelado por um ônibus na interseção com uma grande avenida. Lembrou-se daquela música dos Smiths. Riu sozinho, nervoso. Havia sido demitido. Havia perdido sua namorada em um surto de ciúmes. Havia gasto trinta de seus últimos cinquenta reais com dois livros em um ímpeto. Não tinha muitos amigos. Precisava se embriagar. Era o clichê perfeito. Se imaginou em um filme. Quis ser Marlon Brando em “Sindicato de Ladrões”. Se imaginou no banco de trás do táxi, recitando o dramático diálogo enquanto gesticulava com as mãos. “Eles não entendem! Eu poderia ter tido classe. Eu poderia ter sido um competidor. Eu poderia ter sido alguém, ao invés de um vagabundo, que é o que eu sou!”.

Parou em outra esquina, entrou no bar. Balcão antigo de mogno. Dono vestindo jaleco azul, assistindo qualquer coisa na televisão. Secando o copo americano  em movimentos circulares feito um barman americano. Dois gatos pingados em outra mesa discutindo futebol. Uma velha mesa de sinuca abandonada. Sacou os últimos vinte reais e pediu uma cerveja e uma dose de uísque. Se era pra cumprir o clichê, que o fizesse com estilo. “Mas nacional, por favor, amigo”, porque eram vinte e não cem reais. Tomou de uma talagada só, feito Bukowski. Se comparou ao velho safado. Ainda era relativamente jovem e não tão safado. Tentou fingir que era Hemingway. Não tinha dinheiro para um Mojito, o clássico drink do velho pugilista. Também não era tão chique ou culto para dar num Capote. Nem outsider o suficiente pra acertar no Kerouac. Nem malandro o bastante pra João Antônio. Nem rebelde e talentoso o suficiente pra Rimbaud. Nem drogado o suficiente pra Burroughs. Nem budista e poético o suficiente pra Ginsberg. Nem aforista e trágico o suficiente pra Wilde. A lista era imensa. Riu novamente. Havia diversão nesse tipo de pensamento absorto. Havia diversão em não fazer nada numa tarde de quinta-feira. Havia diversão no filme antigo e sem graça que passava no pequeno televisor do bar. Havia um monte de diversões e de histórias a serem contadas. Só faltava o talento, o tempo e a dedicação para tal. Chacoalhou a cabeça novamente.

Bebeu a cerveja até o final. Pagou o homem do bar. Não estava embriagado, só levemente alterado. Bateu os pés na rua de novo. Um depois do outro. Sentiu-se leve, o concreto macio. Cruzou outra esquina, e mais outra. Parou em outro bar. Repetiu a cena do primeiro. Botequinho semelhante, dono assistindo TV, essa mais moderna, em outro canal, TV fechada provavelmente. Não pensou em nada. Não teve vontade de pensar em nada. Olhou pra carteira. Dinheiro acabado. Lembrou-se que não tinha um emprego, uma namorada, muitos amigos, grandes realizações. Sentiu-se feliz. Sentiu-se pleno. Sentiu-se fora da sociedade. Deu risada sozinho novamente. Chacoalhou a cabeça. Pagou o homem do bar, que o olhou com o canto de olho, pensando no que diabos havia de errado com aquele rapaz.

Bateu os pés na rua mais uma vez. Um depois do outro. Sentiu-se tonto. Sentiu o mundo ao redor girar. Lembrou-se da senhora do antiquário. Olhou os livros na sacola da mão. Lembrou-se de Raskolnikov. Imaginou-se preso em São Petersburgo, indo para a Sibéria por assassinato. Deu risada mais uma vez. Chacoalhou a cabeça uma outra. Cruzou a rua displicentemente. Sorriu pros faróis no sentindo contrário. Foi acertado em cheio. Não precisava mais fingir. Não estava em São Petersburgo nem na Sibéria. Estava livre.