quarta-feira, outubro 06, 2010

Abacaxi

Nessa época eu não aguentava padecer nem cinco minutos de culpa, tédio, tristeza, banzo, angústia, medo, rejeição; eu me rebelava, acendia um charo, ia no cinema, botava um rock na vitrola, batia uma punheta, bebia um bar, qualquer coisa que me ajudasse a catar o porco-espinho à unha. Meu psicanalista, em São Paulo, me recomendava parlamentar com a dor psíquica, nunca fugir dela, pois a dor sempre acha um jeito de te pegar numa curva do rio. Ele tinha razão; mas o que tem com a razão quem quer viver um paraíso a qualquer preço, mesmo que artifical? De vez em quando, eu até encarava uns bodes, claro. Claro não, escuro, negro total. A noite caindo com estrondo surdo no peito, os bodes erguendo a cabeça chifruda do pasto e me encarando com olhos de estrume. É quando o coração pára em diástolo, sangue represado, pressão de mil léguas submarinas no peito, vontade de furar o coração a tiro pra morte jorrar vermelha. Muita lucidez sempre acaba em pânico; eu, então, corregava pra translucidez das drogas e das artes. Sem ofícios. Me favorecia uma circunstância especialíssima de vida: grana fácil no bolso, alguma saúde no corpo, tempo livre. Realidade era a vida dos outros.

Reinaldo Moraes
- Abacaxi (p. 38)

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