sábado, janeiro 15, 2011

olho do tigre

- Garotas gostam de músicos, não de escritores. Por que você não aprende a tocar alguma coisa?
- Eu já tentei, e não funcionou muito bem.
- O que você tentou?
- Quase tudo o que é possível.
- Tipo...?
- Violão, guitarra, baixo, gaita, vocal.
- Você ainda tem bateria.
- Nem arrisco perder o mínimo de dignidade que ainda me resta.
- Mas garotos com guitarra vão continuar fazendo mais sucesso que garotos chorosos com máquinas de escrever. Ou melhor, computadores.
- Eu concordo.
- Então porque você não faz algo pra mudar?
- Porque eu não sei fazer algo pra mudar.
- Forma uma banda, eu sei lá.
- Todas as bandas que eu queria formar já foram inventadas.
- Sempre há algo a se inventar.
- Há sim, mas não vai ser tão bom quanto os Beatles nem tão incendiário quanto os Ramones.
- Se todo mundo pensasse como você, não iam mais existir bandas depois dessas.
- Ou iam existir milhares de outras que também são ótimas. E foi exatamente o que aconteceu.
- Você se acha mesmo um grande crítico musical né?
- Não gosto da palavra "crítico".
- Mas é isso que você é.
- Não vejo dessa forma.
- Você fala mal de praticamente tudo e tece comentários irônicos e ácidos acerca de qualquer coisa que o desagrade, o que é basicamente, tudo.
- Eu sou sincero.
- Você é babaca.
- E isso também.
- O que você vai fazer agora?
- Vou continuar a fazer o que estou fazendo.
- O quê?
- Nada.
- Você tem que fazer algo da sua vida. Se mexer, escrever, sair daí e arrumar um emprego. Fazer a barba, parar de beber, eu sei lá.
- Eu gosto de não fazer nada.
- Você já imaginou que um dia pode ficar sem grana, sem ter o que comer, ou, no seu caso e o que é pior, sem beber?
- Não.
- Mas isso pode acontecer.
- Tudo bem.
- "TUDO BEM?" É assim que você reage quando eu tento te conscientizar de que as coisas não serão fáceis no resto da sua vida?
- Hmm, é, acho que sim.
- Você é realmente um babaca.
- Sem objeções.
- Quem dera eu fosse despreocupada como você...
- Mas eu não sou despreocupado.
- Não? Não liga pra pagar as contas, não saí desse pijama do super-homem há pelo menos três dias, não toma banho há uns dois, fede a cerveja e cigarro e provavelmente passou as últimas nove horas vendo filmes do... que merda é essa? Rocky Balboa?
- Isso mesmo.
- Você realmente perdeu seu tempo vendo os filmes do Rocky Balboa?
- Isso aí.
- Quando eu te conheci você costumava assistir aos filmes do Fellini, do Godard. Que diabos aconteceu?
- Eu ainda gosto deles. E também gosto do Rocky.
- Você vai me dizer que Pierrot Le Fou ou Amarcord são do mesmo nível de Rocky?
- Qual deles?
- Eu não sei, inferno! Qualquer um deles!
- Do 2, sim.
- MEU DEUS DO CÉU. Vou ter que ir embora daqui. Não consigo mais suportar tanta bobagem.
- Eu não disse nenhuma bobagem.
- Disse sim. Diversas delas.
- Bem, você perguntou.
- É, tem razão. Melhor eu ir embora.
- Tudo certo. Me faz um favor?
- Se não for comprar bebida, faço.
- Traz uma coca-cola e uns pães com mortadela quando voltar.
- Mas eu acho que só vou voltar amanhã, se voltar.
- Não faz mal.
- Não vai comer nada nesse tempo?
- Eu me viro.
- Se vira com o quê? A única coisa que tem nessa geladeira é um macarrão de no mínimo cinco dias atrás.
- Tá na mesa.
- Ah, eu não acredito! Vou sair pra comprar a droga dos pães.
- Aproveita e traz um maço de cigarros também.
- PUTA QUE PARIU!
Passos rápidos, porta batendo. Silêncio. Barulho da TV. Música tema de Rocky. Ronco.

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