quarta-feira, janeiro 12, 2011

cachorro-quente duplo

Caminho com passos firmes e rápidos e as mãos espremidas no bolso do casaco girando devagar o isqueiro. Vou ouvindo um disco das Supremes no mp3 e pensando em bandas da Motown e em música negra dos anos 60. Eu devia ter sido um garoto negro nos anos 60, com muito ritmo e uma puta voz pra ter uma banda tipo os Temptations ou os Four Tops, mas ao invés disso eu sou um garoto pobretão andando por uma rua escura e fria em 2011 e contando moedas pra comer um hot dog na barraca de higiene duvidosa na esquina da Avenida Maringá com a Rua Ibiporã, na cidade de Londrina, interior do Paraná. Uma cidade de quinhentos mil habitantes com umas poucas dúzias de pessoas que se encontram em todos os lugares. A maior parte deles deve estar dormindo agora, mas eu estou aqui, firme e forte em direção ao meu cachorro quente, ouvindo um Rhytmin & Blues pelos fones de ouvido e pensando em ideias mirabolantes para roteiros de curtas magníficos que seriam premiados em qualquer festival de seriedade no Brasil. Mas não consigo lembrar de festivais de seriedade e nem acho que o curta merecesse ser premiado se existisse um. A história poderia ser bem simples. Um cara tá andando na rua depois de levar um pé na bunda da garota que ele é apaixonado. As boas histórias sempre tem que começar com caras apaixonados levando um pé na bunda. E ele tá ali, meio triste, meio quieto, meio sonhador andando pela rua sozinho. E ele entra num bar com um aspecto meio sujo e bebe duas cervejas e uma dose de uísque nacional, e sua pouca grana vai embora nessa brincadeira. Então ele saí andando de novo pelas ruas, em plena madrugada, e vai contando as moedinhas pra comprar um cachorro-quente, mais ou menos como eu tô fazendo agora. E aí surge um vira-lata do lado dele. No começo ele pensa em afastar o bicho, por reação natural talvez, mas percebe alguma coisa nos olhos do cachorro que faz ele nutrir algum tipo de simpatia pelo animal. Nessa hora, a câmera tem que focar nos olhos do cachorro, e depois afastar de novo. E aí os dois vão andando, lado a lado, o cara cantarolando uma música triste de amor e o cachorro só andando quieto abanando o rabo vez ou outra, feliz por achar um comum. E a cÂmera filmea os dois andando de costas, num lance bem bonito e clichê, que já deve ter sido usado em uma porrada de filmes sobre animais, de Lessie até K9, um policial bom pra cachorro. E aí eles chegam na barraquinha de cachorro quente, e o cara percebe que faltam alguns centavos pra pedir um, mas joga uma conversa em cima do velho com cara de cansado que mexe na chapa com a espátula e ele aceita fazer um desconto. Aí o cara come o cachorro quente e divide uns pedaços com o cachorro de verdade, e decide que já era hora do companheiro ter um nome. Então ele pensa na coisa mais óbvia, que é o primeiro nome que vier na sua cabeça, e por alguma razão maluca ele lembra de Season Of The Witch do Donovan, e o cachorro vira o Donovan, o cantor de folk inglês. E o rapaz e Donovam terminam o lanche, e voltam a andar pelas ruas. E o rapaz vai seguindo pra direção da sua casa, mas na metade do caminho Donovan para, abana o rabo, olha bem para o rosto do rapaz como quem disesse "valeu por essa, companheiro, mas eu tenho que me mandar. Cê sabe como é, a patroa e os filhotes estão em casa", ou algo como "valeu por essa, parceiro, mas agora eu preciso descolar outro rango, e foi um prazer vagabundear por aí contigo, ou 'flanar', como os estudantes devem dizer por aí né? De qualquer forma, valeu", e essa era provavelmente a resposta certa sobre o que Donovan queria dizer. E aí Donovan muda o seu rumo, e continua andando devagar e abanando o rabo devagar mais uma vez ou outra, e o cara já não pensa mais na garota, não pensa mais em nada, só espera que Donovan tenha sorte e imagina que ruas estranhas ele vai percorrer ainda hoje enquanto ele sobe na cama e fica meio triste rabiscando poemas num caderno velho e relendo páginas de um livro do Dashiell Hammett.
Que bobagem, aquele roteiro. Continuei caminhando pensando em como não tinha pé nem cabeça nem começo nem meio nem fim, e parei na barraca de cachorro quente, mas na vida real era uma senhora com cara de cansada que trabalhava ali na chapa, e não um senhor, e no caso eu também tinha o dinheiro certo pra pedir o lanche, e conferindo os preços percebi até mesmo que podia ser um cachorro quente duplo, com uma salsicha extra. E que diabos poderia acontecer com o rapaz e com Donovan? Eu já não fazia a mínima idéia. Acendi o cigarro e continuei pensando. A ideia surgiu de repente. Donovan segue seu caminho, e se depara com uma rua escura. Donovan continua caminhando, e vê se aproximar um carro com os faróis acesos, andando devagar. O carro diminuí a velocidade e para ao lado de Donovan. O cachorro sente um frio na espinha e tenta acelerar seu trote quadrípede, mas o homem do carro é mais rápido e agarra Donovan e o prende, e o coloca no compartimento traseiro do carro, e só assim é possível ver que é a carrocinha. E Donovan, coitado, desesperado, pensando que seus dias de vadio andarilho iluminado estão simplesmente acabados agora. Vai ser levado pra um lugar horrível, e como está muito velho pra ser adotado, vai acabar passando o resto da vida numa cela escura e fria. E algumas quadras dali, o cara que foi abandonado pela garota está chegando perto do seu apartamento, quando vê um carro passando em alta velocidade. O carro perde o controle e bate num poste. O rapaz corre até o carro e vê o motorista desacordado. Da parte de trás, ouve latidos. O rapaz tira a chave da ignição e abre a parte traseira. Lá, vê alguns cachorros presos em pequenas celas, entre eles, Donovan. O rapaz abre a cela e deixa Donovan e os outros cachorros saírem. Corre até um orelhão e chama a ambulância para o motorista. Donovan abana o rabo mais vezes e anda em círculos, em uma espécie de agradecimento, e depois corre noite adentro. A ambulância chega, e leva o motorista desacordado. Aparentemente ele está bem. O rapaz sobe em seu apartamento, abre uma lata de cerveja e rabisca palavras em seu caderno. O telefone toca, é a garota dizendo que se arrepende e quer o rapaz de volta. Ele recusa e volta a escrever. O curta acaba com alguma música dos Stones de trilha sonora.
Terminei o sanduíche, paguei e saí andando. Aquilo era um tanto quanto estúpido, mas até que de certo modo não parecia uma má ideia. Andei de volta ao meu apartamento. Passei por um vira-lata dormindo em uma esquina escura. Talvez ele fosse como Donovan. Parei por alguns instante, e fiz barulhos e sinais com as mãos. Ele me olhou desconfiado, virou a cabeça e voltou a dormir. Ele não era Donovan. Coloquei as mãos de volta aos bolsos e continuei andando. Era uma noite fria e o cachorro quente duplo tinha caído muito bem.

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