Durante toda a noite à luz do lampião cantamos e berramos canções o que é legal mas de manhã a garrafa está vazia e acordo numa de horror de novo, exatamente como acordei no hotel espelucan em São Francisco antes de fugir pra cá, caí naquela de novo, já me ouço gemendo mais uma vez "Por que Deus me tortura?" - Mas quem nunca teve nem mesmo um princípio de delirium tremens talvez não compreenda que é menos uma dor física do que uma angústia mental impossível de explicar pros ignorantes que não bebem e acusam os beberrões de irresponsabilidade - A angústia mental é tão intensa que você fica achando que traiu seu próprio nascimento, os esforços, até as dores de parto da tua mãe quando ela te pariu e te deu à luz, você traiu todos os esforços que teu pai fez pra te alimentar e te criar e fazer você ficar forte e até mesmo, meu Deus, te educar pra "vida", você sente uma culpa tão profunda que você se identifica com o demônio, e Deus parece tão distante te abandonando à tua bobeira doentia - Você se sente mal na ecepção da palavra, respirando sem acreditar na respiração, malmalmal, tua alma geme, você olha pras tuas mãos impotentes como se elas estivessem pegando fogo e você não pode se mexer pra fazer nada, você olha pro mundo com olhos mortos, no teu rosto uma incalculável expressão de queixa como um anjo constipado numa nuvem - É como se você dirigisse um olhar canceroso ao mundo, através de chumaços de lã escura sobre os olhos - Tua língua fica branca e nojenta, teus dentes estão manchados, teu cabelo parece ter secado da noite pro dia, tem pedaços grandes de remela nos cantos de teus olhos, caca no nariz, espuma nos cantos da boca: em suma, aquele horror asqueroso e tão conhecido que todo mundo já viu nos bêbados de rua dos becos do mundo - Mas não há alegria nenhuma nisso, os caras dizem "Ah ele está bêbado e feliz, deixa ele dormir" - O pobre bêbado está chorando - Está chorando querendo a mãe e o pai e o irmão mais velho e o melhor amigo, ele quer ajuda - Ele tenta se compor puxando um sapato pra perto do pé e nem isso ele consegue fazer direito, ele deixa o sapator cair, ou derruba alguma coisa, inevitavelmente faz alguma coisa que faz com que comece a chorar outra vez - Quer esconder a cara nas mãos e gemer pedindo piedade e sabe que piedade não há - Não apenas proque ele não merece mas porque a tal da piedade simplesmente não existe - Porque ele olha pro céu azul e nele não há nada senão espaço vazio fazendo uma careta pra ele - Ele olha pro mundo, o mundo está de língua de fora pra ele e depois que essa máscara é removida está olhando pra ele com grandes olhos vermelhos vazios que nem os dele - Pode ser que ele veja a Terra se movendo mas o fto não tem qualquer significado - O menor ruído inesperado às suas costas faz com que ele sinta raiva - Ele puxa e repuxa a sua pobre camisa manchada - Ele tem vontade de esfregar a cara em alguma coisa que não esteja ali.
Suas meias são um grude grosso cansado e úmido grudentas - A barba em seu rosto coça e sua e incomoda a boca torturada - Há uma sensação confusa de nunca-mais, chega, argh - O que era lindo e limpo ontem transformou-se irracional e inexplicavelmente num grande monte de merda - Os pêlos em seus dedos o encaram como pêlos de túmulos - A camisa e a calça grudaram-se a seu corpo como se ele tivesse que ficar bêbado pra sempre - A dor do remorso vai penetrando-lhe como se alguém a empurrasse do alto - As lindas nuvenzinhas brancas no céu só lhe fazem doer a vista - A única coisa que lhe resta fazer é virar pro outro lado de cara no chão e chorar - A boca está tão contorcida que não há como trincar os dentes - Não há nem mesmo forças pra arrancar os cabelos.
Jack Kerouac - Big Sur
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