Naquele tempo eu trabalhava como estagiário de comunicação em uma empresa cultural. Meu trabalho consistia basicamente em selecionar algumas notícias de outros veículos para postar no site da empresa e ficar o resto do tempo fingindo que eu estava fazendo algo de verdade atrás do computador, o que era consideravelmente difícil, já que dedicava boa parte aos sites de humor e tinha que manter a expressão séria.
Voltando de metrô para casa, descia na estação e via um homem de cerca de quarenta anos, franzino, quase careca e usando óculos parado em frente à saída da estação, entregando panfletos aos transeuntes. Normalmente eu não costumava pegar aqueles panfletas, pois já sabia do que se tratavam, mas naquele dia, talvez afetado por uma consciência fraternal á condição trabalhista daquele homem que eu via todos os dias, decidi pegar um dos papéis. Bati o olho e lá estava o anúncio:
Taróloga Carmem
Resolvo todos seus problemas e aconselho sobre os caminhos de sua vida
*Amor
*Saúde
*Vícios
*Negócios
*Depressão
Numerologia, tarô indiano, búzios africano, vidências nas águas místicas. Trago a pessoa amada com rapidez e garanto seu sigilo. Venha me visitar, descontos especiais.
Há pouco tempo eu havia sido abandonado por mais uma garota. Não que eu me importasse muito, mas aquilo devia ser um sinal importante. Minha saúde sempre fora boa, mas ultimamente, talvez pelo cigarro, eu vinha tendo crises de tosse intermináveis e sendo atacado por gripes semanalmente. Vícios, eu mantinha dois, bebia e fumava compulsivamente todos os dias. Nos negócios a situação também não estava melhor. Devia duzentos reais ao banco, e com meu pequeno salário ainda longe de vista, sabia que com os juros predadores e meus gastos usuais a chance de dobrar o valor era considerável. Depressão, bom, disso eu não podia reclamar. Já havia tido meus tempos ruins, mas agora me conformava com uma sorte pouco favorável que havia se instalado há alguns anos. Pra ser mais correto, desde a adolescência.
É claro que eu sabia que tudo aquilo não passava de bobagem. Certa vez, numa feirinha do litoral, paguei cinco reais pra uma pobre cigana idosa supostamente ler minha mão. Ela disse que eu encontraria a garota da minha vida e arranjaria um grande emprego. Eu estava desempregado e solteiro há um tempo considerável. Nada aconteceu durante um tempo, e tive ainda mais certeza que a pobre cigana de nada sabia. Tempos depois, consegui um emprego como operador de telemarketing. Foi o pior emprego que já tive. Ao menos, trabalhando lá, conheci uma garota e me apaixonei perdidamente. Ficamos juntos por um tempo, pouco. Logo depois, ela me abandonou por um estudante de medicina. A cigana tinha acertado exatamente o contrário. Pobre cigana. Pobre de mim.
Apsar dos pesares, talvez a taróloga Carmem fosse melhor. Eu não tinha nada a perder. Quer dizer, eu poderia me endividar ainda mais, mas nada que fosse piorar muito minha já lastimável situação. E se a taróloga Carmem soubesse o que me dizer? De súbito, andei até o endereço indicado. Um pequeno cartaz mal-feito estava colado a parede da pequena e estreita porta. Toquei a campainha e uma voz surgiu no interfone lateral.
- Pois não?
- Vim pra ver a taróloga Carmem, a que resolve todos meus problemas.
- Pois bem, pode subir.
A porta fez um barulho e se abriu. Uma longa escada levava a um lugar escuro. Andei até lá. Carmem estava sentada em uma antiga poltrona, atrás de uma mesa redonda com uma toalha púrpura, onde cartas e pedras estavam espalhadas por cima.
- Pois bem meu jovem. Quais são seus problemas?
A taróloga Carmem tinha uma voz áspera e falava devagar. Fiquei estático, não sabia que diabos havia ido fazer ali.
- Senhora Carmem, vossa senhoria Carmem, excelentíssima Carmem, não sei como devo chamá-la...
- Apenas Carmem.
Ela me interrompeu.
- Pois bem, senhora Carmem. Gostaria de saber como conseguir uns trocados. É que ando passando por algumas dificuldades financeiras e...
- Você trabalha, meu filho?
- Trabalho sim senhora, dona Carmem.
- Você bebe, meu filho?
- Bebo sim senhora, dona Carmem.
- Beber faz mal. Parar de beber tens quê.
A taróloga Carmem então falava como o mestre Yoda. Pode parecer bizarro, e até inacreditável, mas por alguma razão estapafurdia o fato da taróloga Carmem falar como mestre Yoda me confortava. Eu era um grande fã de Star Wars e acreditava que de alguma maneira, eu poderia também ser um nobre cavaleiro não descoberto, tal como Luke Skywalker.
- Primeiro parar de beber deve. Para isso deve tomar todos os dias dez gotas disso aqui.
Carmem jogou em minha direção um vidro com um líquido verde-escuro dentro. Decidi que era hora de ir embora. Aquilo já estava ficando muito estranho. Nem aspirina eu tomava, quanto mais um remédio de cor esquisita fornecido por alguém que se dizia taróloga.
- Isso é uma poção mágica extraída de animais silvestres da África e combinada com ervas medicinais do Amazonas. Parar de beber vai em alguns dias. Caso não tome, continuar a beber vai, e muito perderá em breve.
Aquilo me arrepiou. Pude sentir a onda de medo tomando conta de mim. A taróloga Carmem era mesmo maluca, e se tomar o líquido me parecia ruim, ser amaldiçoado por aquela senhora que falava como Yoda me parecia pior ainda.
- Tomarei, senhora Carmem, tomarei. Mas agora preciso ir embora. Quanto devo à senhora?
- Meu filho, esse medicamento é raro, então o preço não é barato. Mas pra você farei por setenta reais mais o preço da consulta, que é vinte.
Estava apavorado. Não tinha mais consciência de mim mesmo. Não sabia o que fazer. Fiz o que era mais óbvio.
- Tudo bem, senhora Carmem. A senhora aceita cartão de crédito?
A taróloga Carmem retirou de debaixo da mesa uma máquina de cartão. Paguei e fui embora pra casa, com medo e preocupado.
Passavam-se das nove da noite. Eu bebericava uma cerveja e ouvia um disco do Creedence na vitrola. A preocupação me consumia. Deveria tomar o remédio já comprado e estar à mercê do que acontecesse por ele ou aguentar as consequencias da praga da taróloga Carmem? Resolvi que tomar o remédio era a decisão mais sentada.
O gosto era ruim. Lembrava vinagre com toques de açucar. Porra de animais silvestres africanos e frutas amazonenses o caralho. Aquela taróloga safada fazia isso com mantimentos estragados da cozinha e vendia por setenta reais. Mas de certo modo, teve um bom efeito. O tal líquido dava um sono danado, e aquilo me ajudou um bocado com meu duradouro problema de insônia.
Alguns dias depois, parecia ótimo. Estava sempre disposto, e realmente bebia menos. Aos poucos conseguia pagar minhas dívidas. Voltei ao recinto de dona Carmem e comprei mais dois vidros da tal poção com gosto de vinagre e açucar.
A vida ia bem. De alguma forma, as pessoas me tratavam melhor. sobrava mais dinheiro, e eu me via frequentando restaurantes de alta gastrônomia e bebendo vinhos importados. Com moderação, como a taróoga Carmem me prescrevera. Indiquei Carmem a amigos próximos que passavam por problemas. "Peça a poção verde, é tiro e queda", indicava com conhecimento de causa. "Isso tudo é uma bobagem, Rick. Essa mulher é uma vigarista e você está louco". Cretinos. Mal conheciam a taróloga Carmem e blasfemavam sobre ela. A pobre mulher só estava tentando ajudar pessoas em apuros.
Um dia, voltando pra casa, encontrei o homem franzino de óculos que entregava os panfletos da taróloga Carmem. Há algum tempo não o via por ali, e agora aparecia sem panfletos nas mãos. Resolvi conversar com ele, saber a razão de ter largado um emprego que indiretamente ajudava pessoas a irem ao caminho dos sábios conselhos da taróloga e de sua incrível poção.
"Garoto, aquela mulher é uma vigarista. Sinto muito em ter te feito ir até lá e gastado seu dinheiro, mas ela é uma vigarista", foi o que ele me disse.
"Porque você estava falando isso? A taróloga Carmem me ajudou. Estou muito melhor agora tomando a poção de animais silvestres e frutas do Amazonas", repliquei.
"Quatro pessoas que tomaram estas poções malucas dela morreram, e mais uma dúzia está no hospital."
Aquilo me fez subir um frio à espinha. Em casa, joguei os vidros fora. De repente, comecei a passar mal. Seria eu mais uma vítima da maléfica taróloga Carmem? De repente, a visão ficou turva e desmaiei.
Acordei de frente para um teto branco. Barulho em volta, pessoas conversando e muito agito. Era um hospital. O homem franzino de óculos havia chamado uma ambulância para minha casa, já prevendo o pior. Passei meses me recuperando. A tal poção era uma mistura de porcarias caseiras que haviam atacado o fígado de quem fazia uso delas. Depois de um bom tempo de cama, voltei para casa.
Resolvi passar no recinto de Carmem para tirar satisfações. Na frente, não havia mais o cartaz com seu nome. Toquei o interfone e ninguém atendeu. Uma vizinha, me vendo parado em frente à porta, disse que Carmem havia mudado. Com o dinheiro, comprara um carro importado e sumira no mundo. Nunca mais ouviram falar dela.
Voltei a beber, e me demiti de meu emprego. Tempos depois, fui preso por atacar uma cigana que agarrou minha mão numa calçada do centro da cidade. Soube que o homem franzino se suícidou de remorso. A polícia disse que a taróloga Carmem foi vista pela última vez no Rio de Janeiro. Havia realizado diversas plásticas e ao saber da procura dos oficiais havia fugido com um namorado modelo, loiro e alto para a Europa. Agora o problema era da Interpol, foi o que eles disseram. A taróloga Carmem conseguia mesmo resolver problemas. Ao menos, os dela.
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