Na mesma casa que estou ficando aqui em Buenos Aires estão hospedados também dois estudantes suíços. Um deles tem em torno de 25 anos, é suiço e mora em uma pequena cidade da parte italiana da suiça, cerca de trinta quilômetros de Milão, cidade natal de seus pais (e que graças a isso o renderam a dupla cidadania suiça-italiana). Por causa disso fala um espanhol enrolado, como que uma mistura de espanhol com italiano, com os trejeitos típicos de se falar dos ítalos. O sotaque carregado e alguns gestos com a mão. Apesar de tudo é um cara calmo, que sabe ficar quieto quando preciso. Tem aparencia jovial, um tanto metrosexual que usa secador e tem diversos cremes e outras porcarias do tipo. Usa roupas de marca, gosta de house e música eletrônica, mas apesar de tudo é um cara bacana, que fica na dele e é simpático quando preciso. É com esse que divido o quarto, por causa de um rolo enorme que não vale explicar agora. Mas é um bom companheiro de quarto, exceto pelo fato de reclamar quando uns desses dias atrás eu cheguei completamente bêbado de madrugada, tropeçando nas coisas e fazendo um barulho infernal que contribuiu para que ele não conseguisse "dormir mais depois de ter sido acordado pelos barulhos". No outro quarto fica mais um suiço, esse da suiça-germânica, mas que também fala italiano, francês, inglês, um pouco de chinês e agora espanhol, que ele faz questão de estudar todos os dias. É simpático, porém seus jeitos podem realmente irritar depois de alguns dias. Quando me vê agita os braços, me cumprimenta e faz coisas do tipo, mas ás vezes faz umas esquisitices de dar medo. Logo que me conheceu e que eu contei que fazia jornalismo perguntou se gostava de ler, e o quê. Imaginando que ele jamais teria ouvido falar em Kerouac, Fante, Bukowski, Burroughs e etc eu completei com outros grandes atores mais conhecidos que gosto. "Heminghway, Dostoiévski e coisas assim." Um grande erro, pois ele ficou super feliz de eu conhecer Dostoiévski com apenas 'quase' 19 anos.
Uns dias depois, quando zanzávamos pela residência tentando pensar em algo a fazer de turismo pela cidade descobri que ele gostava de museos. Até aí tudo bem, nesses lugares você pode realmente encontrar arte de ótima qualidade e passar um bom tempo admirando coisas e adquirindo cultura. O erro foi descobrir que suas prioridades são extremamente avançadas no estágio de ser um adulto chato querendo ser culto e parecer muito importante para as outras pessoas. Tem vinte e nove anos, em média de um metro e noventa, cabelos pretos curtos, usa cavanhaque e se veste com bermudas esquisitas típicas de um turista de um país frio em um país quente e camisas polo listradas. Gosta de estudar em seu quarto, e também gosta de perguntar porque os outros não estudam e não fazem isso ou aquilo. Tenta ser um cara bacana, agitando os braços quando te vê, perguntando sobre como foi seu dia, te chamando para tomar umas cervejas e coisas assim, mas sua aurea disfarçada de tentativa de ser culto é um pouco irritante.
Ele não é daqueles tipos que tentam falar as coisas para se exibir, e nem tenta desprezar as outras pessoas por não pensarem como ele, igual diversos cultos e pseudo cultos por aí, mas tem alguma coisa em seu ar que irrita depois de certo tempo de convívio. É como se tivesse uma necessidade de que as outras pessoas fossem como ele, e isso fica claro em suas esporádicas conversas estranhas que são interrompidas por breves silêncios como se ele quisesse avaliar sua inteligência ou coisa do tipo em relação a dele. É uma manía deveras irritante e sem graça e eu pude perceber hoje quando ele bateu na porta de meu quarto e me chamou pra tomar uma cerveja. "Tudo bem, vamos lá". Com o calor do caralho que faz nessa cidade nessa época do ano e como eu estava querendo tomar uma mesmo achei que era a ótima idéia.
Os problemas começaram ao chegarmos ao bar. Como eu já disse antes, a rua em que vivemos em Buenos Aires é completamente cheia de bares. Eu não demorei muito tempo a descobrir quais são os mais baratos e que mais compensam para os apreciadores de cerveja. E lá fomos nós ao bar que vende garrafas de quilmes de 1 litro por 10 pesos (uma diferença brutal em relação aos outros bares, que vendem geralmente em torno de 15 ou mais, bem mais em alguns casos). Ele queria apenas um copo de cerveja, de preferência tirada, como chopp, e não conseguia falar isso para o garçon. É claro que eu, com meu espanhol primário facilitado pelas semelhanças entre a língua dos porteños com a nossa tive grande vantagem sobre seu bom espanhol de suiços poliglota que passa boa parte do tempo livre no quarto fazendo exercícios. Não que eu fale muito melhor que ele, mas considerando a facilidade da semelhança entre minha língua materna com a que estou aprendendo e sua dedicação para o estudo da conjugação dos verbos eu diria que estamos em um nível de empate.
Mas voltando ao assunto, depois de eu conseguir convence-lo que ali não havia chopp e somente cerveja engarrafada começou outro problema que me deixou ao ponto de quase desistir de beber com esse cara. Ele queria porque queria uma long neck, que aqui são extremamente caras e desvantajosas em compensação a garrafa de 1 litro. Depois de muito trabalho para convence-lo a pedirmos a de 1 litro, com ele resistindo por dizer que só queria beber um pouco e eu insistindo e dizendo que eu beberia o resto arranquei dele a frase pérola: "mas aí eu vou pagar por mais do que eu vou beber", ou algo do tipo. Era o apíce. O cara ganha em euro, o que signifca que sua moeda vale aqui quase cinco vezes mais, eu tenho reais, que valem somente 40 centavos a mais, e ele estava ali discutindo uns mls de cerveja por um dinheiro de merda. Mas claro, como eu sou brasileiro e não desisto nunca convenci o suiço a pedirmos a cerveja de um litro sob a justificativa de que eu pagaria a garafa. Como esperado, ele bebeu pouco mais de um copo e eu matei o resto da garrafa.
Mas a pior parte começava agora. Após alternar entre intervalos de breves silêncio ele me perguntava se eu sabia como conjugar tal verbo. Se a questão fosse para a sua ajuda, seria bem válido, eu só falaria que não saberia e ficaria tudo ótimo, com ele indo procurar nos seus livros e me deixando em paz. Mas ele queria me testar, ou algo assim, o que é uma coisa deveras imbecil já que eu não tenho a mínima paciência para conjugar verbos em nenhuma língua e posso acertá-los muito bem na grande maioria das vezes tendo uma frase como contexto para a conjugação. Mas claro, o grande chato suiço continuou insistindo, até eu sugerir que ele me disesse frases como contexto e mostrar para o culto que eu sabia a porcaria toda. Finalmente pensei que ele me deixaria em paz, mas nada pode ser tão ruim que não possa piorar:
- Você já ouviu falar de Jean-Jacques Russeau?
- Já sim, o filósofo. Respondi na lata e torci para que o assunto acabasse ali. Ele me olhou em silêncio por algum tempo, alternando sorrisos estranhos e me olhando como se estivesse pensando em algo, de uma forma que me irritou bastante. Não tardou a ele voltar a me incomodar com suas conversas extremamente chatas:
- Você conhece Darwin?.
- Sim, conheço, teoria da evolução e a coisa toda.
Ainda me olhando pausadamente em silêncio e alternando com irritantes sorrisos de canto de boca ele prosseguiu:
- Sabe porque os mosquitos pretos vivem muito tempo e os mosquitos brancos somente alguns dias?
- Não.
- Porque eles são brancos, e existem muros brancos, percebe?
- Não.
Fazendo gestos leves com a mão ele tentava fazer algo como um muro e um mosquito voando em direção a ele, enquanto continuava a dizer:
- São brancos, e os muros são brancos também.
- Eles se espatifam, ah, compreendi. Falei para tentar encerrar a conversa de uma vez por todas. Mas claro que não. Ele queria dizer alguma coisa muito profunda ali com toda sua inteligência ou merda do tipo, e é óbvio que eu só queria tomar minha cerveja e fumar uns cigarros enquanto amaldiçoava o calor e procurava alguma garota bonita pra parar os olhos por algum tempo.
Mas a coisa não estava boa para o meu lado, não haviam muitas garotas por perto e ele continuava no silêncio enquanto me olhava com olhos arregalados como um peixe morto.
- Eu sou uma pessoa que penso demais, sabe, então quando leio filosofia eu penso muito.
- Ah, sim, compreendo, é interessante mesmo, pois você lê um ponto de vista com grandes argumentos e depois lê outro com bons argumentos também, e tudo isso fazendo muito sentido com a evolução humana e a sociedade que vivemos, inserido em cada cultura e nas relações humanas e....
Desabrochei a falar besteiras sem sentido só pra fingir que concordava com ele e encerrava o papo por ali. Funcionou. Deus pai, era a melhor coisa da noite. Bebi minha cerveja rápido e pedimos a conta. Paguei e vi que ele lançou a sua metade para mim. Menos mal assim.
Ainda faltam nove dias aqui, e só o que eu tenho a fazer é evitar o máximo esse tipo de conversa, e se possível evitar seus convites para dar umas voltas por aí também, porque como diria minha avó - antes só do que mal acompanhado - e cá entre nós, eu sempre preferi mesmo a minha própria companhia.
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