segunda-feira, junho 13, 2011

Casablanca

Charlie acordou naquele dia sem saber o que fazer. Recém fora demitido de seu emprego como taxista. O chefe da companhia desconfiou que ele andava dirigindo após beber, o que não podia ser considerado uma mentira.

Charlie calçou os chinelos e tomou um banho quente no chuveiro elétrico do banheiro do quarto que alugava numa pensão mediana. A senhoria era uma grande pentelha, e não aceitava que se recebessem visitas após ás dez da noite. Ultimamente aquilo não tinha sido um grande problema, já que Charlie não tinha uma companhia feminina há um tempo considerável.

Charlie trocou de roupas e andou até a padaria. Tomou um café puro e comeu um pão com manteiga. Passou na banca de jornais e comprou a última edição de uma revista de cinema. Agora que estava desempregado Charlie vislumbrava a possibilidade de ver os clássicos que sempre ouvira falar e nunca tinha assistido. Nos tempos atuais as pessoas iam até os cinemas e pagavam para assistir filmes usando óculos coloridos. Charlie assistia Casablanca em sua televisão de quatorze polegadas e se indagava de como era sortudo aquele Humprey Boggart. O cara era dono de um bar e ainda tinha uma boa garota. O resto da história não importava muito para Charlie. Ele também gostaria de ter uma garota e ser dono de um bar, mas aquela era uma realidade muito diferente da sua.

Foi num dia comum em que Charlie se viu deparado com o inusitado. Ele acabara de entrar num bar e tomava uma dose de uísque barato quando a garota avançou porta adentro. Era loiar e tinha cabelos lisos mas desgrenhados. Usava uma maquiagem vagabunda e parcialmente borrada. A garota trajava um vestido preto curto e meias arrastão rasgadas. Nos pés, pobres sapatos de couro há muito desgastado. Charlie sentiu pena e atração pela garota ao mesmo tempo. Ela se sentou e por coincidência pediu o mesmo uísque barato que Charlie bebia.

A garota virou o copo em uma só talagada e pediu outra dose ao barman. Charlie permanecia quieto em seu canto. A garota virou a segunda dose, deixou uma nota no balcão e saiu porta afora. Charlie sentiu vontade de ir atrás dela. E foi isso qeu fez após pagar sua conta.

Charlie andou nas ruas escuras e viu que a garota se dirigia até uma esquina. Ela lixava as unhas e olhava ao relento. Charlie imaginou o qeu a garota pensava naquele momento. Talvez um grande amor perdido, nas contas a serem pagas no final do mês ou num filme de Humprey Boggart. Essa última hipótese era muito improvável, e Charlie sabia disso, mas gostava de acreditar em coisas de sua imaginação. Charlie já tinha uma experiência de vida considerável para saber que ela era uma garota de programa. Um carro se aproximou e a garota entrou após conversar por alguns minutos com o motorista. Charlie sabia que ela voltaria, então decidiu esperar.

Charlie esperou por horas a fio ao longo da noite enquanto a rua se tornava cada vez mais escura e deserta. Fazia frio, e Charlie usava um desses casacos leves que não tem grande serventia em baixas temperaturas. Charlie pensou em desistir, mas quando arriscou os primeiros passos em direção à sua casa, o carro parou e a garota desceu. Estava ainda mais desgrenhada e com a maquiagem ainda mais borrada, mas de alguma forma Charlie achou que ela estava ainda mais bonita dauqela forma. Era uma espécie de cachorro de raça abandonado. A qualidade estava lá, mas havia sido escondida por anos de sofrimento e uma vida estranha.

Charlie decidiu se aproximar. A garota não o notou. Charlie a tocou no ombro, enquanto arriscou algumas palavras. Sua voz se embolou, e Charlie gaguejou perguntando o nome da garota.

"Você não precisa saber meu nome, se quer saber só o preço". Charlie não estava interessado no preço. Ele não tinha dinheiro e não era o tipo de relação que gostaria de estabelecer com aquela garota. "Hoje eu me chamo Judy, ok? Judy, mas só por hoje". Charlie se apresentou com seu nome verdadeiro e tentou puxar algum tipo de assunto. Sua voz não saia, e a garota já o olhava com desinteresse. "Você já assistiu Casablanca?", foram as únicas coisas que Charlie conseguiu dizer. "Nunca ouvi falar nisso, mas se você tem uma casa branca e bonita eu acho é ótimo". Charlie não tinha uma casa branca e bonita, e nem mesmo sabia mais o que dizer. Se afastou da garota sem dizer tchau. Andou alguns passos e recostou-se atrás de um muro. Ainda podia ver a garota, mas ela não podia mais ver Charlie.

Dali há pouco outro carro encostou. A garota entrou e sumiu novamente. Charlie decidiu que era hora de voltar pra casa. Caminhou com milhões de ideias do qeu deveria ter feito na cabeça, e se sentiu patético por tudo aquilo.

Charlie chegou ao seu quarto de pensão, serviu-se de uma dose de uísque e assistiu Casablanca mais uma vez. A garota do filme se parecia com Judy, ou qualquer que fosse seu nome. Charlie adormeceu com o copo na mão antes do final do filme. Naquela noite, ele sonhou que era Boggart e que Judy era a garota do filme. Mas Charlie sabia que eles nunca teriam Paris, e provavelmente nunca teriam nem mesmo aquele quarteirão escuro e frio.

O dia seguinte era uma segunda-feira, dia de faxina na pensão onde Charlie morava. A empregada tinha uma chave própria, que usava para entrar e limpar quarto por quarto. Quando entrou no quarto de Charlie, se deparou com o vazio. Todas as coisas tinham sumido, e também o homem que desde que fora demitido dormia até meio dia. Eram dez e meia da manhã, e um bilhete havia sido deixado na cama. A camareira não sabia ler muito bem, mas com alguma dificuldade pode decifrar as palavras escritas naquele pedaço de papel. "Fui pra Casablanca. Diga pra Judy que a estou esperando lá". Charlie nunca mais foi visto desde então, e sua ausência não foi muito sentida.

Judy continou trabalhando na mesma esquina, e nem mesmo se lembrou daquele homem estranho que dizia ter uma casa branca. Charlie foi encontrado anos depois, em um antigo cinema do centro da cidade que exibia Casablanca em uma sessão retrô especial. O lanterninha pode perceber que ele estava frio e não respirava quando as luzes se acenderam. Naquela mesma noite, Judy foi espancada por um cliente violento. Por alguma razão, ela lembrou-se de Charlie. "Talvez aquele fosse um homem bom", foi o que ela pensou enquanto a ambulância a levava para o hospital. Judy nunca mais foi tão bela.

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