sexta-feira, março 11, 2011

Uma Noite em Newhaven

Subitamente, senti-me tão tremendamente feliz que tive ímpetos de levantar-me e gritar ou cantar. Mas só podia pensar: "Bon voyage!". Que frase aquela! A gente passa a vida inteira vagabundeando por aí, a murmurar uma frase tomada por empréstimo aos franceses, mas, será que alguma vez, realmente, chegamos a fazer uma boa viagem? E será que compreendemos que, mesmo quando caminhamos até o bistrô ou até o armazém da esquina, o que estamos fazendo é partir numa viagem, da qual talvez não retornemos jamais? Se acaso sentíssemos intensamente que cada vez que zarpamos de casa, embarcamos numa viagem, será qeu nossas vidas seriam um pouco diferentes do que são agora? Enquanto fazemos nossa viagenzinha à esquina, a Dieppe, a Newhaven, ou a outro lugar qualquer, a Terra também está viajando, para ninguém sabe onde, nem mesmo os astrônomos. Mas, todos nós, quer nos movamos daqui à esquina, ou daqui à China, viajamos juntos com nossa mãe, a Terra, que viaja junto com o Sol, o qual, por sua vez, arrasta consigo todos os planetas... Marte, Mercúrio, Vênus, Netuno, Júpiter, Saturno, Urano. O firmamente inteiro viaja, e, se você prestar atenção, poderá ouvir o ecoar de um "Bon Voyage!" "Bon Voyage!" Se você se mantiver bem quieto, sem fazer perguntas tolas, compreenderá qeu viajar nada mais é que uma idéia; que tudo na vida se resume nisso, numa viagem dentro de outra. Que a morte não é a última delas, mas o princípio de uma outra, cujo porquê e destno desconhecemos. Mas, mesmo assim, "Bon Voyage!" Tive vontade de levantar-me e cantar tudo isso em dó menor. Via o Universo como uma rede de caminhos, alguns profundos e invisíveis como as órbitas planetárias; e, nesse vasto e nebuloso ziguezaguear pelas passagens fantasmagóricas, existentes entre um domínio e outro, podia ver todos os seres, animados e inanimados, acenando uns para os outros: as baratas para as baratas, as estrelas para as estrelas, o homem para o homem, Deus para Deus. Todos a bordo, para a grande viagem a lugar nenhum. Mas, de qualquer maneira, "Bon Voyage!" Da osmose ao cataclismo, tudo é perpétuo movimento, vasto e silencioso. Permanecer imóvel, dentro deste grande e alucinado movimento, mover-se com a Terra, por mais que ela cambaleie, unir-se às baratas, às estrelas, aos homens e aos deuses, isso é viajar! E, lá fora, no espaço onde nos movemos, onde deixamos nossas trilhas invisíveis, será possível que se ouça um eco débil e sarcástico, uma vozinha inglesa, untuosa e anêmica, perguntando com incredulidade:

"Ora, vamos, Sr Miller, não me está querendo dizer que também escreve livros de medicina?"

Sim, por Cristo, agora posso afirmar com a consciência tranquila. Sim, Sr João-Ninguém de Newhaven, eu também escrevo livros de medicina, maravilhosos livros de medicina, que curam todos os males no tempo e espaço. De fato, agora mesmo estou escrevendo o maior de todos os purgativos da consciência humana: o sentimento de viagem!

Henry Miller - Dias de Clichy e Uma Noite em Newhaven

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