Ali acabava tudo. Todos na mesma noite. Tudo o que havia significado algo para aquela garota, juntos, numa boate mediana de uma cidade mediana no norte do Paraná. Ela também era uma garota mediana, mas ela tinha algo. Deus sabe que ela tinha algo. Qualquer um que a visse, ou que falasse com ela, ou que sentisse aquele sorriso e aquelas palavras ditas devagar e repetidamente saberia disso. Ela era demais. Ela era mais que demais, e eu sabia que meu coração pulava e minha garganta fechava quando eu a via. Eu sabia disso muito bem. Eu sabia disso extremamente bem.
Ali estávamos eu, apenas um garoto que ela tinha conhecido e se relacionado por pouco tempo. Mas bom, é melhor começar pelas partes mais importantes. Então ali, naquela casa noturna, naquele antro horrível de músicas ruins e pessoas fúteis, estava seu ex-namorado de três anos, o rapaz que a tinha feito mulher, o rapaz que a tinha ensinado o pouco que sabia sobre a vida, o rapaz que era um completo idiota (segundo contara meu amigo que tinha estudado com ele e reprovado o fato de este ter passado no vestibular com cotas para negros, não sendo negro). O outro rapaz, era seu atual namorado. Bom, até onde eu sabia, ela o tinha conhecido através de seu ex-namorado, o que foi citado anteriormente. Eram amigos, até a derradeira fase em que ela terminou com o primeiro e namorou o segundo. Mas no meio disso, tiveram alguns garotos. E no meio de alguns garotos, estive eu. Essa é sem dúvidas a parte menos importante, e também é sem dúvidas, a parte mais importante. E como eu estou contando a história... bem, se torna importante.
Talvez eu fosse aquele com o futuro mais incerto dali. Um seria médico, o outro provavelmente já trabalhava, e bom, ele tinha uma namorada. E eu nem sabia escrever direito. Eu não era um romancista, eu não era um poeta, eu não era um jornalista. Que diabos eu tava fazendo por ali? Porra, eu nem imaginava. Eu não gostava do tipo de música que tocava por ali. Eu não gostava de lugares lotados. Eu não gostava de dançar. Eu não sabia dançar. A bebida era cara e não se podia fumar. Que diabos eu tava fazendo ali? Ninguém podia responder. Nem mesmo eu. Mas algo naquela garota me fazia querer pular em todas as direções, tentar voar ou inventar novas palavras para o frio na barriga e a boca seca e o coração acelerado que eu sentia quando chegava perto dela. A minha vida era um bocado estranha. Eu estudava jornalismo mas eu não queria ser jornalista, eu queria ser escritor mas não escrevia, eu queria ser cineasta mas não sabia mexer em uma câmera, eu queria ser um astro do rock mas eu não sabia tocar mais que duas ou três notas muito mal-tocadas. A vida era um bocado estranha por aqueles tempos. Em breve eu deixaria Londrina, minha cidade natal, cidade dos meus pais, cidade onde passei a maior parte da minha vida, e voltaria pra São Paulo, a maior cidade do Brasil, a maior cidade da América latina, e eu era só um garoto caipira que não conseguia ter uma garota e que não conseguia fazer algo de importante de sua vida.
Ali, naquela casa noturna, naquele antro de idiotas, eu pensava em tudo aquilo e pensava em músicas dos Beach Boys dentro da minha cabeça. Aquele não era um lugar pra mim. Consegui uma carona e fui pra casa. Servi uma dose de uísque e terminei de ler Pergunte Ao Pó, de John Fante. Tinha salvado o último capítulo para um momento especial, e aquele era um momento especial. Aquele era meu livro preferido, e pela primeira vez eu o estava lendo em sua versão original na língua inglesa. Agarrei forte as páginas do livro e chorei feito uma criança quando Arturo Bandini jogou uma cópia de seu livro no deserto do Mojave dedicada a sua amada Camilla Lopez. Aquele era pra mim o livro mais belo já escrito, e John Fante era o escritor mais fantástico que já havia pisado nesse mundo horrível e cheio de coisas más. Fante tinha coração. Fante sabia mexer com os sentidos, com a vida, com as emoções. John Fante. F-A-N-T-E, como diria Bukowski. Eu queria ser John Fante. Eu imaginava como Fante teria sido, o que teria feito de sua vida, e chorava ao pensar em sua velhice, sua cegueira e suas duas pernas amputadas em seus últimos anos. Fante era um guerreiro. Eu queria ser John Fante, eu queria ser Arturo Bandini! Oh, eu o amava demais. As palavras fluíam quando se falava de Fante, quando se escrevia sobre Fante. E o que eu realmente queria era ser um escritor. Eu gostaria ter uma grande história de amor como Pergunte Ao Pó, nem que ela não terminasse tão bem assim. Mas a única história que eu tinha, era sobre ter me apaixonado de verdade por uma garota entre seu primeiro e segundo namorados, e eu não era mesmo tão notável. Nós nem mesmo tínhamos nos conhecido mais intimamente, se é que se pode dizer assim. Eu era um completo idiota, e sentia isso sufocando minha garganta e pulando em meu peito feito foguetes voando em direção a lua. Recostei na cama e dormi. Amanhã seria outro dia.
Acordei, de ressaca. Pensei em tudo o que tinha feito na noite anterior. A noite não tinha sido boa. Me lembro de ter ido até a garota. Me lembro de ela dizendo que me amava, mas como um amigo. Ela não disse “como um amigo”, mas eu podia entender pela entonação de suas palavras. Lembro de ela ter dito de que eu era uma grande garoto. Eu não era um grande garoto. Na verdade, em comparação com seu antigo e atual namorados, eu era, pelo menos na altura. “Você só namora tampinhas?”, perguntei, tentando me passar por superior. Eu não era superior coisa nenhuma. Eles a tinham conquistado. Eles a tinham possuído. Eu tinha chorado em seu colo diversas vezes. Eu tinha feito declarações estúpidas de amor. Ela riu e me ironizou com um “Altão!”. Rimos juntos. Alguém a puxou para conversar. Eu estava acabado por ali. Andei até seu atual namorado. Eu estava completamente bêbado. Recostado nas cadeiras, pronto para a ação, ele mantinha sua postura de seriedade e defesa de território. Aproximei a mão e o cumprimentei. Lembro de ter dito que ele era um cara de sorte por estar com aquela garota, e lembro de ter dito que ele devia ser um cara bacana, pois ela não ficaria com um cara que não fosse. E dito que eu não tinha segundas intenções com sua namorada, quando isso era uma completa mentira. Talvez naquela hora fosse mesmo verdade. Eu não mentiria. Ou mentiria¿ Eu sei lá, pros diabos com isso. Eu tinha dito todas aquelas bobagens ali, em frente ao cara por quem eu tinha sido trocado, ao cara mal encarado com quem ela passava a noite. E era a mão dele que a acariciava, não a minha. E era ele que ela beijava e era com ele com quem ela se deitava, não comigo. Mas ele era um cara bacana, ou pelo menos tentou ser. Me disse para relaxar, agradeceu e deu um aperto de mão amistoso. Saí sem me despedir. Ela ainda conversava com alguém. Acenei de longe, ela acenou também. Talvez aquela fosse a última vez que nos veríamos. Talvez aquela fosse a última vez que meu coração bateria tão forte, que minha garganta se fecharia e que eu pensaria em conquistar o mundo para oferecer a ela de presente. Ali acabava tudo, mas eu não sabia exatamente o que era tudo aquilo. Talvez ainda houvesse esperança. Talvez as coisas fossem ser melhores. Talvez o mundo continuasse afastando e aproximando as pessoas conforme sua vontade. A minha vida ainda era um bocado estranha. Eu era um bocado estranho. Eu só pensava em coisas bonitas. Cantarolando uma música do Arnaldo Baptista e pensando em John Fante. Agradecendo a Deus por coisas pequenas. Acreditando em Deus, ou em algo superior, que olhasse por mim, que me ajudasse. Não em religiões, apenas em Deus, ou quem quer que fosse que estivesse cumprindo esse papel. Destino, vida, fé, eu não sei. Eu nunca ia saber. Talvez ali não acabasse tudo. Talvez ali acabasse só mais um capítulo. Talvez outro estivesse prestes a começar.
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