Donnie me dizendo que na verdade eu não tenho nenhum problema, que não há nada de errado comigo, que eu nem imagino o que é sofrimento.
"Cala a boca, Donnie, você não imagina o que eu penso."
Donnie me dizendo que sabe muito bem o que eu penso, que a gente já se conhece há uma porrada de anos,e que o fato de estarmos ali, drogados até a menor parte do cérebro, chafurdando e bebendo igual uns porcos não ia mudar esse fato.
"O fato da gente se conhecer há muito tempo não te faz necessariamente me conhecer."
Donnie diz que sabia que era exatamente esse tipo de bobagem pseudo-superior que eu ia dizer, e que essa era mais uma prova de que ele estava certo.
Peço para Donnie calar a boca e buscar mais uma cerveja. Ele vai até a geladeira, abre uma garrafa e despeja em dois copos. Abre o armário, saca uma garrafa de uísque e joga numa xícara. Os copos acabaram, a pia transborda. Atira duas pedras de gelo e gira pra direita e depois pra esquerda. Nós sempre fazíamos aquela merda de gesto. Era algum tipo de saudação inútil antes de beber o uísque.
Donnie traz os copos e se equilibra como pode, em seu corpo esguio e desastrado já completamente arrasado pelas substâncias a que fora submetido naquela noite. Donnie me alcança o copo de cerveja e dá um gole no uísque. Bebo a cerveja e fico olhando fixamente pra dose de uísque. Donnie não se toca, é mesmo muito burro.
"Você vai me dar a droga do uísque ou não?"
Donnie sorri e diz, "pensei que nunca ia pedir", me esticando a xícara. É inevitável rir da sua cara de pau em me provocar num momento como esses. Rimos juntos. A noite é agradável lá fora. Em breve vai amanhecer, e sabemos que a bad trip vai vir com tudo quando não conseguirmos dormir, pilhados como baterias totalmente carregadas, mas sem nada pra descarregar. Bebo os goles com calma. Uma brisa entra pela janela. Astral Weeks do Van Morrison toca no rádio. Donnie ameaça trocar o som. Faço vista grossa e ele logo entende o recado. Senta ao lado do rádio e fica batendo a cabeça de leve na parede. Acendo um cigarro enquanto isto. Não falamos nenhuma palavra durante algum tempo. Donnie ameaça pegar no sono. Fecha os olhos e encosta na parede. O cigarro chega ao fim. Arremesso a bituca ainda acesa em Donnie. Ela ricocheteia em seu peito e caí em seu colo, ainda em fagulhas. Donnie levanta-se num pulo só e se agita todo.
"Você é idiota, seu porra? Qual é a merda do seu problema? Você quer botar fogo na casa inteira com essa merda de vício nojento, seu bastardo dos infernos?"
Sorrio, e Donnie fica ainda mais puto. Se serve de mais uma dose de uísque, bebe de um gole só e vejo sua feição mudar. Já não está mais puto, está pensativo. Continuamos quietos. Donnie mexe as mãos impacientemente. Ele prepara algum tipo de represália pela bituca. Posso estar bêbado, sob efeito de drogas e completamente exausto, mas ainda consigo reparar nesses detalhes. Vejo sua mão alcançar o copo e arremessá-lo em minha direção com velocidade impressionante. Desvio e por poucos centímetros vejo o copo espatifar-se na parede. Os cacos caem pelo chão.
"Olha só, seu merda, agora você vai ter que limpar isso.", digo para Donnie. Ele finge não ouvir, enquanto se serve de outra dose. Levanto os olhos em direção a geladeira e depois ao armário. Ele entende que quero uma cerveja e uma dose. A casa é minha, o uísque também, estamos quites. Ele aceita a trégua e me serve as bebidas. Arriscamos algum assunto. Não conseguimos prosseguir em nenhuma conversa. Donnie diz que quer ir embora. Nos despedimos cordialmente, e ele saí pela forta afora. Me sento em frente ao rádio e rezo alguma prece inexistente. Donnie pode não acreditar, mas há mesmo algo de muito errado comigo.
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