sexta-feira, novembro 09, 2012

Nine out of ten


1

Nove entre dez estrelas de cinema me fazem chorar. Rick não descia a Portobello Road, mas sim a Avenida Paulista, enquanto os fones reverberavam o reggae melancólico de Caetano. Rick estava solitário e confuso. Isso era comum em sua vida, mas agora ele realmente não sabia mais o que poderia fazer. Há seis anos ou mais Rick sentia vontade de morrer. Não que ele fosse se jogar na frente de um carro ou dar um tiro na própria cabeça, mas ele sabia que sentia, e também sabia que aquele sentimento era real. Bebendo com uma amiga, Rick ouvira dizer que era “visceral” e que não devia se achar assim tão poético. Rick sabia que não era mesmo muito poético. Na verdade ele só se achava um grande bosta solitário e confuso, e talvez esse fosse o grande problema. “Nem todo mundo precisa viver com sexo, drogas e rock’n’roll pra ser feliz, Rick”, foi o que a amiga disse. Rick balançou a cabeça concordando enquanto sorvia mais um gole de cerveja.

Não estava muito gelada e não era de uma boa marca. Rick era apenas um estagiário de jornalismo sem muito interesse para a profissão. Era natural que tivesse pouco dinheiro e consequentemente poucas chances de beber boas bebidas. Mesmo com a ajuda financeira provida por seu pai, que ficara em sua cidade natal, no norte do Paraná, Rick vivia duro. Não que ele se importasse tanto. Dinheiro nunca fora sua principal preocupação, mas ele não tinha dúvidas de que um pouco mais não lhe faria mal algum. Talvez comprar umas roupas melhores, uma bicicleta para perder uns quilos, boas bebidas, discos de vinil e livros de poesia. Era basicamente isso. Mas na verdade Rick sabia que só precisava de um pouco de companhia, e tudo isso não era nada além de tentar consegui-la, fosse real ou fictícia, como nos livros policiais que costumava ler até duas ou três da madrugada.

Rick era um daqueles insones que acordavam com os olhos inchados e olheiras sobressalientes. Ao se olhar no espelho, logo pela manhã, sabia que estava lascado. “Mais um dia de merda vem aí”, era o que pensava enquanto escovava os dentes. Saia de casa com os fones nos ouvidos e um ray ban falsificado no rosto. Aguentar o sol e o barulho da caótica São Paulo logo cedo era uma missão quase apocalíptica. Mas ele tinha que suportá-la todos os dias. Atravessava a rua até o ponto de ônibus, subia no veículo barulhento, tirava os fones e abria o livro que estivesse lendo. Alguns minutos depois – dependendo do trânsito, é claro – descia no ponto e encarava cinco ou seis quadras de uma chata subida. Chegava no trabalho, cumprimentava os colegas com um seco “bom dia”, se servia de uma grande caneca de café (cheia até a metade, com três colheres pequenas de açúcar) e bebia comendo quatro ou cinco bolachas água-e-sal. Podia ser pior, era o que ele pensava. Se lembrou dos tempos de telemarketing. Aquilo sim era o inferno.

Na época, Rick não estava estudando e não tinha dinheiro pra coisa alguma. Resolveu tentar o primeiro emprego que conseguisse, e deu logo um grande azar. Lá, se apaixonou por uma ruiva, que o largou pouco tempo depois. O romance foi rápido, nem aos finalmentes eles chegaram, mas Rick se considerava “poético” e “apaixonado”, e a paixão lhe fez escrever algumas dúzias de poemas pouco inspirados para a bela garota. Agora aquilo tudo era passado. Rick não tinha garota ruiva, poemas ou emprego na merda de telemarketing. Sua tarefa era escrever pequenas matérias sobre qualquer bosta que estivesse acontecendo no mundo. Parecia que as coisas estavam melhorando.

2

Acordou com náuseas naquele dia. Na noite anterior, pedira comida delivery e passara boa parte da madrugada bebendo coca-cola e fumando cigarros. Sabia que coca-cola era horrível para sua insônia, mas era um dos vícios que gostava de manter – assim como os cigarros. Baqueado por uma gripe ainda não totalmente curada, Rick se sentou à frente do computador e digitou dois contos, ambos considerados muito ruins pelo próprio autor. Desistiu daquela bobagem e resolveu ler. Era o livro escrito por uma amiga, mais jovem, talentosa e perseverante do que ele. Sorriu ao ler a dedicatória na primeira página. “Não sou boa com dedicatórias, então só vou te mandar um beijo e essas merdas”. Devorou boa parte do livro antes de tentar cair no sono. Novamente não funcionou. Voltou pra frente do computador, olhou para o teclado e decidiu que precisava fazer algo. Começou a digitar furiosamente. As palavras foram saindo. Não eram boas, mas fluíam com naturalidade. Rick se lembrou de seus dezesseis anos, de quando escrevia com paixão e acreditava em algo maior. Depois se lembrou de seus dezessete, dezoito, dezenove e vinte. Se perguntou em como as coisas podiam ter piorado tanto em tão pouco tempo. Sua juventude – outrora bela e esperançosa – havia se transformado num suceder de dias monótonos e solitários. Há tempos Rick não sabia o que era uma garota, e há tempos não tinha coragem de se aproximar de uma.

“Você é um cagão, Rick Nicoletti!”, gritou em frente ao espelho. Detestava seu reflexo. Se achava feio e injustiçado pelo mundo. Pros diabos, bem sabia que o mundo era injusto com todo mundo. Esfregou os olhos e voltou a escrever. Agarrou um livro de Dostoiévski na estante ao seu lado, abriu uma página aleatória e leu as palavras do velho e sábio russo. As aventuras e as dificuldades do jovem Raskólhnikov lhe inspiraram. Não havia terminado de ler Crime & Castigo. As demandas de livros da faculdade e o estágio como jornalista lhe tomavam boa parte de seu tempo livre. Além disso, precisava cuidar da quitinete que ocupava sozinho no centro da cidade e beber com os poucos amigos que lhe restavam. Riu de sua própria desgraça e voltou a escrever. Agora as palavras deslizavam na tela. O que antes piscava em branco, aterrizando-o e relembrando-o de como era inútil e pouco criativo, agora se enchia com letras bonitas e encaixadas. Ele esperava que aquela história valesse a pena. Quem sabe enviá-la para uma revista de literatura?, sonhou Rick. Se havia algo que ele sabia fazer, esse algo era sonhar.

Durante toda a sua vida, tudo o que Rick fizera fora esperar por seu momento sublime, sua glória nunca alcançada. Quando criança, imaginara-se jogador de futebol, estufando as redes do gol adversário e inflamando a torcida no abarrotado estádio. Já adolescente, delirou sobre a vida de um rock star, encantando multidões e vivendo de forma inconsequente e fabulosa. Na juventude, acreditou que seria um escritor. Imaginou uma bela vida de percalços e tristezas, mas nenhum deles em vão, pois o fantástico Rick Nicoletti haveria de escrever cada um de seus devaneios no papel, transformando aspectos comuns e situações mundanas em obras de arte históricas e inesquecíveis. Mas no final, Rick sabia que um sonho era só um sonho. E a verdade é que ele odiava ter que acordar depois de um deles.

3

Acordar era sempre ruim. Pouco importava se tivesse tido um belo sonho ou um pesadelo, se tivesse dormido muito bem ou muito mal, Rick detestava acordar. A mesma dificuldade que tinha para dormir se revelara no amanhecer. Por dormir tarde, despertava tarde, e quando acordado cedo pelos compromissos rotineiros, estava de mau-humor e pouco propenso a acreditar na vida. Talvez essa fosse a grande questão. Talvez seus dias fossem tão ruins por isso. Olhando para a cama - uma dessas bicamas de solteiro pouco confortáveis, muito comuns nos anos 90  - percebeu que o móvel ficava unido rente à parede direita da quitinete. Com sua cabeceira voltada para a porta do pequeno imóvel, Rick acordava todos os dias literalmente com o pé esquerdo. Calculou formas de mudar a cama de lugar. Talvez aquilo acabasse com a má sorte. Resolveu fumar um cigarro para pensar. Acabou esquecendo da troca. Na verdade ele nunca fora muito supersticioso, e não achava que aquilo faria grande diferença em sua vida. Rick só tinha uma convicção: acreditar que, independente de crenças, ritos ou simpastias, sua vida continuaria sendo uma merda. Ele era um pessimista nato e não se orgulhava muito disso. Na verdade, ele não se orgulhava de praticamente nada do que fizera até então. Com sorte, aquilo estava prestes a mudar. Mas Rick nunca fora um cara de grande sorte.

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