1
Nove
entre dez estrelas de cinema me fazem chorar. Rick não descia a Portobello
Road, mas sim a Avenida Paulista, enquanto os fones reverberavam o reggae
melancólico de Caetano. Rick estava solitário e confuso. Isso era comum em sua
vida, mas agora ele realmente não sabia mais o que poderia fazer. Há seis anos
ou mais Rick sentia vontade de morrer. Não que ele fosse se jogar na frente de
um carro ou dar um tiro na própria cabeça, mas ele sabia que sentia, e também
sabia que aquele sentimento era real. Bebendo com uma amiga, Rick ouvira dizer
que era “visceral” e que não devia se achar assim tão poético. Rick sabia que
não era mesmo muito poético. Na verdade ele só se achava um grande bosta
solitário e confuso, e talvez esse fosse o grande problema. “Nem todo mundo
precisa viver com sexo, drogas e rock’n’roll pra ser feliz, Rick”, foi o que a
amiga disse. Rick balançou a cabeça concordando enquanto sorvia mais um gole de
cerveja.
Não
estava muito gelada e não era de uma boa marca. Rick era apenas um estagiário
de jornalismo sem muito interesse para a profissão. Era natural que tivesse
pouco dinheiro e consequentemente poucas chances de beber boas bebidas. Mesmo
com a ajuda financeira provida por seu pai, que ficara em sua cidade natal, no
norte do Paraná, Rick vivia duro. Não que ele se importasse tanto. Dinheiro
nunca fora sua principal preocupação, mas ele não tinha dúvidas de que um pouco
mais não lhe faria mal algum. Talvez comprar umas roupas melhores, uma
bicicleta para perder uns quilos, boas bebidas, discos de vinil e livros de
poesia. Era basicamente isso. Mas na verdade Rick sabia que só precisava de um
pouco de companhia, e tudo isso não era nada além de tentar consegui-la, fosse
real ou fictícia, como nos livros policiais que costumava ler até duas ou três
da madrugada.
Rick
era um daqueles insones que acordavam com os olhos inchados e olheiras sobressalientes.
Ao se olhar no espelho, logo pela manhã, sabia que estava lascado. “Mais um dia
de merda vem aí”, era o que pensava enquanto escovava os dentes. Saia de casa
com os fones nos ouvidos e um ray ban falsificado no rosto. Aguentar o sol e o
barulho da caótica São Paulo logo cedo era uma missão quase apocalíptica. Mas
ele tinha que suportá-la todos os dias. Atravessava a rua até o ponto de
ônibus, subia no veículo barulhento, tirava os fones e abria o livro que
estivesse lendo. Alguns minutos depois – dependendo do trânsito, é claro –
descia no ponto e encarava cinco ou seis quadras de uma chata subida. Chegava
no trabalho, cumprimentava os colegas com um seco “bom dia”, se servia de uma
grande caneca de café (cheia até a metade, com três colheres pequenas de açúcar)
e bebia comendo quatro ou cinco bolachas água-e-sal. Podia ser pior, era o que
ele pensava. Se lembrou dos tempos de telemarketing. Aquilo sim era o inferno.
Na
época, Rick não estava estudando e não tinha dinheiro pra coisa alguma.
Resolveu tentar o primeiro emprego que conseguisse, e deu logo um grande azar.
Lá, se apaixonou por uma ruiva, que o largou pouco tempo depois. O romance foi
rápido, nem aos finalmentes eles chegaram, mas Rick se considerava “poético” e “apaixonado”,
e a paixão lhe fez escrever algumas dúzias de poemas pouco inspirados para a
bela garota. Agora aquilo tudo era passado. Rick não tinha garota ruiva, poemas
ou emprego na merda de telemarketing. Sua tarefa era escrever pequenas matérias
sobre qualquer bosta que estivesse acontecendo no mundo. Parecia que as coisas
estavam melhorando.
2
Acordou
com náuseas naquele dia. Na noite anterior, pedira comida delivery e passara
boa parte da madrugada bebendo coca-cola e fumando cigarros. Sabia que
coca-cola era horrível para sua insônia, mas era um dos vícios que gostava de
manter – assim como os cigarros. Baqueado por uma gripe ainda não totalmente
curada, Rick se sentou à frente do computador e digitou dois contos, ambos
considerados muito ruins pelo próprio autor. Desistiu daquela bobagem e
resolveu ler. Era o livro escrito por uma amiga, mais jovem, talentosa e
perseverante do que ele. Sorriu ao ler a dedicatória na primeira página. “Não
sou boa com dedicatórias, então só vou te mandar um beijo e essas merdas”.
Devorou boa parte do livro antes de tentar cair no sono. Novamente não
funcionou. Voltou pra frente do computador, olhou para o teclado e decidiu que
precisava fazer algo. Começou a digitar furiosamente. As palavras foram saindo.
Não eram boas, mas fluíam com naturalidade. Rick se lembrou de seus dezesseis
anos, de quando escrevia com paixão e acreditava em algo maior. Depois se
lembrou de seus dezessete, dezoito, dezenove e vinte. Se perguntou em como as
coisas podiam ter piorado tanto em tão pouco tempo. Sua juventude – outrora bela
e esperançosa – havia se transformado num suceder de dias monótonos e
solitários. Há tempos Rick não sabia o que era uma garota, e há tempos não
tinha coragem de se aproximar de uma.
“Você
é um cagão, Rick Nicoletti!”, gritou em frente ao espelho. Detestava seu
reflexo. Se achava feio e injustiçado pelo mundo. Pros diabos, bem sabia que o
mundo era injusto com todo mundo. Esfregou os olhos e voltou a escrever.
Agarrou um livro de Dostoiévski na estante ao seu lado, abriu uma página
aleatória e leu as palavras do velho e sábio russo. As aventuras e as
dificuldades do jovem Raskólhnikov lhe inspiraram. Não havia terminado de ler
Crime & Castigo. As demandas de livros da faculdade e o estágio como
jornalista lhe tomavam boa parte de seu tempo livre. Além disso, precisava
cuidar da quitinete que ocupava sozinho no centro da cidade e beber com os
poucos amigos que lhe restavam. Riu de sua própria desgraça e voltou a
escrever. Agora as palavras deslizavam na tela. O que antes piscava em branco,
aterrizando-o e relembrando-o de como era inútil e pouco criativo, agora se
enchia com letras bonitas e encaixadas. Ele esperava que aquela história
valesse a pena. Quem sabe enviá-la para uma revista de literatura?, sonhou
Rick. Se havia algo que ele sabia fazer, esse algo era sonhar.
Durante toda a sua vida,
tudo o que Rick fizera fora esperar por seu momento sublime, sua glória nunca
alcançada. Quando criança, imaginara-se jogador de futebol, estufando as redes
do gol adversário e inflamando a torcida no abarrotado estádio. Já adolescente,
delirou sobre a vida de um rock star, encantando multidões e vivendo de forma
inconsequente e fabulosa. Na juventude, acreditou que seria um escritor.
Imaginou uma bela vida de percalços e tristezas, mas nenhum deles em vão, pois
o fantástico Rick Nicoletti haveria de escrever cada um de seus devaneios no
papel, transformando aspectos comuns e situações mundanas em obras de arte
históricas e inesquecíveis. Mas no final, Rick sabia que um sonho era só um
sonho. E a verdade é que ele odiava ter que acordar depois de um deles.
3
Acordar
era sempre ruim. Pouco importava se tivesse tido um belo sonho ou um pesadelo,
se tivesse dormido muito bem ou muito mal, Rick detestava acordar. A mesma
dificuldade que tinha para dormir se revelara no amanhecer. Por dormir tarde,
despertava tarde, e quando acordado cedo pelos compromissos rotineiros, estava
de mau-humor e pouco propenso a acreditar na vida. Talvez essa fosse a grande
questão. Talvez seus dias fossem tão ruins por isso. Olhando para a cama - uma
dessas bicamas de solteiro pouco confortáveis, muito comuns nos anos 90 - percebeu que o móvel ficava unido rente à
parede direita da quitinete. Com sua cabeceira voltada para a porta do pequeno
imóvel, Rick acordava todos os dias literalmente com o pé esquerdo. Calculou
formas de mudar a cama de lugar. Talvez aquilo acabasse com a má sorte.
Resolveu fumar um cigarro para pensar. Acabou esquecendo da troca. Na verdade
ele nunca fora muito supersticioso, e não achava que aquilo faria grande
diferença em sua vida. Rick só tinha uma convicção: acreditar que, independente
de crenças, ritos ou simpastias, sua vida continuaria sendo uma merda. Ele era
um pessimista nato e não se orgulhava muito disso. Na verdade, ele não se
orgulhava de praticamente nada do que fizera até então. Com sorte, aquilo estava prestes a mudar. Mas Rick nunca fora um cara de grande sorte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário