Os mesmos personagens continuam aqui. O garoto bêbado inveterado e desbocado. O jovem poeta sonhador à procura de um amor. O jornalista musical ávido por rock and roll. O boêmio tentando compor sambas sobre a dor e a infelicidade. O pseudo-intelectualóide metido a palpitar sobre as mazelas universais. O cinéfilo frequentador de sessões vazias contemplando a solidão. O pobre diabo que crê ser injustiçado por um mundo ruim. O cretino que quer destruir o mundo. O garoto que queria compor uma balada parecida com os Beatles. O jovem punk querendo anarquizar o sistema e desmoralizar a podridão da sociedade. O maníaco-depressivo flertando com o suicídio. O anjo abençoado que crê em auréolas e milagres de vagabundagens urbanas.
Os personagens continuam aqui, me assombrando e se alternando em uma velocidade impressionante. Os personagens nunca vão embora, e se mantem num constante fluxo. As personalidades sendo trocadas como roupas velhas, e os sonhos intactos, nunca alcançados, pouco procurados, muito batalhados. A esperança latente e sofredora, pobre tolice juvenil de um futuro que nunca chega, de um encontro casual que mudará o curso do inevitável destino para sempre. Esse destino traiçoeiro que me leva a cometer as maiores loucuras, ou a me trancar em casa com medo do mundo lá fora, ou a encarar o mundo lá fora com medo da solidão aqui dentro. Os personagens continuam aqui, e algo me diz que sempre continuarão. Os personagens-fantasmas sussurrando conselhos fantasiosos em meu ouvido, me dizendo para seguir em frente, para não seguir em frente, para batalhar, para desistir, para fazer alguma coisa que mantenha o coração batendo e o sangue pulsando nas veias um pouco entupidas de fumaça de cigarro e bebida.
Andando pela rua, sempre em direção a algum lugar. O cigarro pendendo na mão, as tragadas curtas e profundas, a fumaça subindo no ar. Milhões de pessoas se cruzando na cidade, cada qual para seu lado, cada qual com sua vida, cada qual com seus sonhos, eu também, eu no meio, eu perdido, eu tentando me encontrar, tentando encontra algo na multidão, nas pessoas, na solidão, nas bitucas de cigarro pendendo no chão, nas palavras do livro que leio dentro do ônibus, chacoalhando em direção ao trabalho, em direção à faculdade, em direção à lugar nenhum e a todos os lugares do mundo. O balcão do bar, gelado, impessoal, mas de uma maneira estranha confortador, como se eu pertencesse aquele lugar, como se eu sempre tivesse pertencido. As garrafas se amontoando no canto do apartamento, os copos esvaziando, o disco girando e a música inundando a pequena kitnet de alegria, tristeza, vida ou beleza, tudo em uníssono, tudo de uma só vez, apoteose de imaginação maluca inocente e inexperiente. Absorção de qualquer tipo de frase batida que te faça seguir em frente. Absorção de qualquer pequeno significado em um futuro melhor. Os pais lá longe, muitos quilômetros de distância, os verdadeiros amigos também, as garotas que te fizeram sofrer também, e todos juntos nos meus sonhos, na minha cabeça perturbada, que ferve como uma locomotiva e solta a fumaça dos cigarros que se tornam bitucas apagadas no cinzeiro.
E que diabos eu procuro? não faço a mínima ideia. Não tenho mais medo do escuro. Não tenho medo de muitas coisas. A decepção não mais me assusta. A alegria tampouco me anima. O sangue corre com menos velocidade e o coração já não pulsa lá muito bem. A barriga está crescendo, o tempo diminuindo, e os velhos sonhos se amontoam lá no fundo, junto com as pilhas de papéis que abrigam versos e prosas inúteis e pouco inspiradas. Palavras geniais, pensara eu enquanto escrevia, palavras que vão mudar o mundo, ou parte dele, que vão se juntar num grande livro, que farão companhia aos meus grandes heróis na estante das bibliotecas. Mas elas ainda continuam ali, empilhadas, quase nunca lidas, pouco relembradas. Palavras, palavras, perdidas, achadas. Um dia todo esse papel vai pro lixo ou vai ser queimado. Um dia essa minha carcaça vai ser cremada ou enterrada. Um dia esses meus sonhos não vão valer mais nada. Nesse dia, alguém por aí vai pensar alguma coisa parecida numa outra madrugada. Quem sabe a gente não se encontre dia desses? Pode ser aqui, ou pode ser em outro lugar. Não tenho pressa. Não há necessidade. Será só mais outro garoto perdido na imensidão dessa cidade e de sua própria cabeça, mais ou menos como eu agora.
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